segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Comentário à afirmação do Sr. Prof. Sérvulo Correia

Creio, que em países como o nosso, que seguiram desde sempre o direito administrativo e público de matriz continental, com especial relevo para a influência francesa, seria de esperar um sistema de justiça administrativa deformado e desfazado do seu fim - que terá de ser, inevitavelmente para que possa realizar a justiça, a protecção dos direitos subjectivos dos particulares. Com efeito, o nascimento da justiça administrativa em França, ficou manchado pela distorção do príncipio da separação dos poderes, que os revolucionários habilmente construiram para manter sob a alçada do governo o controlo da legalidade dos actos de governação; ora esta realidade, facilmente se explica pelo contexto histórico em que surgiu, pois os governantes não se podiam dar ao luxo, de ver todas as suas reformas, serem inutilizadas por um poder judicial ainda muito ligado ao "ancién regime".
Aquilo que foi adoptado em França, por imperativos políticos, foi também adoptado em Portugal por razões em tudo diferentes mas em tudo iguais, para permitir que ao abrigo de uma imagem falsa de sistema judicial administrativo continuassem os actos administrativos livres de qualquer verdadeiro controlo judicial. Sistema esse, que levava a que nenhum governo nem nenhuma força política tivessem incentivos para o alterar. Esta realidade, explica também o porquê das reformas neste sector judicial se terem feito, até recentemente, unicamente para dar cumprimento a disposições constitucionais após a adoptação da nossa actual Constituição. Com efeito, só para não incorrer em inconstitucionalidade por acção ou omissão, introduziu o legislador ordinário, reformas na justiça administrativa; só aí, foi obrigado a renúnciar aos previlégios de foro, que a adopção de um sistema deformado à nascença de origem continental, lhe tinham proporcionado!
Olhando para trás, é flagrante notar que, se ao invés de se ter optado por este sistema cujas especialidades e deficiências se explicam por um determinado contextualismo histórico-cultural, cuja influência poderia ter ficado geografica e temporalmente limitada a um certo país e sistema de governo, se tivesse adoptado o sistema anglo-saxónico, a justiça administrativa e principlamente os direitos dos particulares, para cuja protecção e efectivação a justiça existe, teriam ficado melhor servidos.
Se é verdade, que a influência da doutrina alemã, e as evoluções do sistema francês moderno, têm ajudado a efectivar a protecção dos direitos dos particulares em sistemas de matriz continental, com a verdadeira jurisdicionalização da ordem dos tribunais administrativos e fiscais e com a introdução do sistema de providências cautelares, por exemplo, verdadeira é também a conclusão que toda esta conturbada evolução e todo este hiato de tempo em que não existiu uma justiça administrativa efectiva, poderiam ter sido evitados. Ainda para mais, tendo em conta que a Portugal, como é costume, tardam as reformas a chegar (sendo muitas vezes deficiente a sua aplicação concreta), tudo levaria a crer que o nosso contêncioso administrativo teria uma vida complicada desde o seu nascimento. E se temos assistido a algumas reformas, que culminaram com a reforma de 2004, com vista à adoptação de um sistema mais contemporâneo à democracia e mais apto a efectivar os direitos dos particulares, muito se deveu à influência do direito comunitário. Com efeito, as pressões de uma Europa mais unida, em que se quer uma justiça mais moderna, mais real e mais eficaz em todos os sectores, levaram a que o legislador não tivesse outro remédio se não forçar a evolução do contêncioso administrativo, nem qque para tal fosse necessário explicitar todo o caminho a precorrer no texto constitucional.
Ainda assim, certo do longo caminho que já precorremos e consciente da nova realidade de um contêncioso que nasceu "torto", pergunto-me a mim mesmo e a vós, caros colegas e Professores, se ainda se justifica (ou se alguma vez se justificou), um previlégio de foro especial traduzido da existência de um ramo de direito e numa ordem especializada de tribunais, para a nossa administração pública?

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